domingo, 1 de setembro de 2013

Escrita


Escrita

Não escrevia um texto literário desde a altura em que era forçado a fazê-lo na escola para a disciplina de Português. 
Recentemente um amigo meu convidou-me a ir a um workshop de escrita. Pensei que aquilo fosse um pouco mais teórico. Não era (e ainda bem), era chegar e começar logo a escrever. 
Criei uma pequena estória, uma página e meia talvez, mas gostei da experiência.
Na altura estava um pouco envergonhado com o que tinha escrito. Não me pareci algo que quisesse mostrar a outras pessoas, pensava que não estava suficientemente bom. 
Depois compreendi que não podia esperar que as coisas saíssem bem logo a princípio. Os primeiros textos não seriam muito bons. E mesmo que os que se sigam sejam melhores não me vou sentir satisfeito.
Isso não significa que não vou escrever porque não consigo fazê-lo tão bem como gostaria, nem significa que vou esconder o que escrevi onde ninguém o veja, afinal só lê quem quer, e se alguém fizer críticas aquilo que escrever posso aproveitar essas críticas para melhorar, por isso aqui estão os pequenos textos que escrevi nos últimos meses. Agora estou a preparar algo um pouco mais longo e complexo, quando estiver terminado, colocarei aqui também.







Conto 1

 Abriu os olhos. Tinha ouvido um choro, um pranto que se repetiu diversas vezes e o forçara a despertar. Algures, ao longe, uma criança chorava.
Por instantes o ruído cessou e logo os olhos se voltaram a fechar preguiçosos.
Mas o som repetiu-se uma e outra vez. Agora que estava um pouco mais desperto notava que a origem do som não podia estar muito longe.
Contrariado reabriu os olhos, havia no pranto um carácter de urgência que não podia ser ignorado.
Olhou em redor, nos primeiros instantes teve dificuldade em reconhecer o local em que se encontrava.
Do seu lado direito um muro em cimento, com cerca de um metro de altura, à esquerda a mochila de campismo e os corpos dos seus companheiros temporários de viagem, dois alemães que tinha encontrado no dia anterior quando descia da montanha e que agora roncavam ritmadamente dentro dos seus sacos cama. Por cima de si no céu brilhava a lua, cheia, redonda, nítida na sua luz branca.
Recordou com algum saudosismo as noites em que ele e Matilde ficavam horas, de braço dado, conversando sobre a ponte romana e olhando nas águas do rio o reflexo da lua, mas Matilde fazia já parte do passado e ele não se arrependia da decisão que tomara.
O pranto ouviu-se mais uma vez, trazendo-o de volta ao presente, ao terraço do hostel barato na medina de Marrakesh onde se encontrava. Desta vez soava mais a grito de raiva animalesca do que a choro de humano.
Levantou-se rapidamente obrigando os músculos a se libertarem do marasmo morno do sono que os entorpecia e foi então que viu, o choro de bebé, o grito de raiva, o pranto humano que lhe perturbara o descanso não era mais que o alarido causado por três gatos com o cio que nervosos se desafiavam em cima do muro que dava para a rua.
Como sabia que não ia conseguir pregar olho enquanto os gatos seguissem com os seus rituais, saiu do saco cama e com o braço esboçou o gesto de lhes atirar com uma pedra numa tentativa vã de os afastar.
Os gatos não recuaram nem um milímetro, um deles voltou-se para ele e com o pelo eriçado e os músculos contraídos e bufou-lhe exibindo as garras e os dentes numa postura agressiva que o surpreendeu e intimidou ligeiramente.
Subitamente e sem motivo aparente os três gatos desinteressaram-se e abandonaram muro do terraço.
Aliviado e algo embaraçado por se ter deixado intimidar algo tão pequeno como um gato inspirou o ar quente da noite e olhou para baixo.
Na rua havia ainda algum movimento. Casais de regresso a casa. Homens fumando cigarros pensativos.
O barulho dos gatos que agora estavam na rua fê-lo desviar o olhar para a esquina onde acabara de chegar uma mulher.
Movia-se graciosamente com uma agilidade felina e um passo ligeiro e ondulante. Trazia vestidas calças de ganga justas e uma camisola longa coberta de lantejoulas prateadas. Os cabelos eram longos, lisos e muito negros, pareciam macios e frescos ao toque e formavam uma grande trança que ela usava caída sobre o lado esquerdo do peito.
Envolvendo os cabelos trazia um lenço castanho aveludado que em vez de ocultar os seus cabelos salientava o brilho destes e a suavidade dos traços do seu rosto.
Por um instante ela parou. Os gatos aproximaram-se e enroscaram-se nas suas pernas com prazer, esfregando o pelo e o corpo nos seus tornozelos.
Ela baixou-se para afagar um deles distraidamente e depois parecendo adivinhar que ele a observava olhou diretamente na direção do terraço onde ele se encontrava e esboçou um sorriso confiante e enigmático.
Os dentes eram brancos. Os lábios carnudos, morenos e doces mas o que lhe prendeu a atenção foram os olhos, grandes, castanhos, pestanudos. Por momentos os contornos das casas e das vielas esbateram-se, esfumaram-se e ele nada mais via que os olhos dela que o fitavam.
Depois ela desviou o olhar, como que invadida duma timidez comovente e infantil, levantou-se retomando o seu caminho e desapareceu atrás duma esquina.
Agora que estava completamente desperto não lhe apeteceu voltar à cama, não devia ser muito tarde se ainda andava gente pelas ruas. Trocou de roupa e desceu para o exterior.
Na rua os aromas eram mais fortes, um cheiro intenso, mistura exótica de terra quente, chá de menta, urina, jasmim e especiarias diversas.
Mais doce do que os outros o cheiro do desejo pairava no ar, uma essência de pele de baunilha e canela.
Deambulou pelas ruas guiado apenas pelo perfume que ela tinha deixado à sua passagem.
Cruzou as ruas da medina sem ver os homens vestidos com jellabas, longos robes de mangas compridas com capuz, sem ver as mulheres de lenço na cabeça falando uma língua estranha enrolada de sol e céu e de deserto, sem notar que cruzava os souks de loiças e de tapetes, de sapatos e de curtumes, de quinquilharias e de doces, de frutos secos e de especiarias, de roupas e de perfumes.
Embrenhou-se mais e mais nos labirintos da medina, nos labirintos do desejo.
A sua solidão era uma sede mais forte que a que ele tinha sentido sob o sol do meio dia no deserto.
As ruas eram cada vez mais escuras, mais sujas e mais estreitas no coração da medina.
Não havia gente naqueles becos perdidos, apenas os gatos eram testemunhas da sua busca, olhavam-no nos olhos e compreendiam. Alguns troçavam dele atravessando-se no seu percurso e miando nos becos para o desorientar, agora que o rasto de essência que ela tinha deixado era cada vez mais escasso, diluído, apenas meia dúzia de moléculas de feromonas deixadas pelo ar que logo o vento desarrumava.
Terminou. Chegou ao fim. Um beco sem saída, escuro. A doçura já não perfumava o ar.
Olhou em todas as direções e apurou o ouvido mas não existiam indícios de que ela alguma vez tivesse existido.
No canto mais escuro da viela uma multidão de gatos rodeavam um objecto. Aproximou-se ansioso, seria alguma coisa deixada por ela?
Era apenas uma lata de atum vazia que alguém tinha deitado fora.
Desapontado tentou recordar como tinha ali chegado e qual seria o caminho de regresso.
À sua frente, atrás do mar de gatos uma porta abriu-se.
Ela olhou-o, e os seus olhos refletiam a lua.
Marhaba, disse ela. Ele entrou. Ela fechou a porta.

A lua continuou a brilhar.







Conto 2

 Alto no céu o sol de Agosto brilhava implacável.
O barulho das cigarras gritava o calor no ar resinoso do pinhal e nem a sombra das árvores aplacava o bafo quente que se fazia sentir.
Mas não era frescura que buscava Manuel.
Na verdade não sentia o sol pelas costas, nem o suor que lhe escorria pingando da testa. Não notava que as pernas lhe doíam de cansaço da longa caminhada nem lhe fazia nenhuma diferença a pequena pedra que se havia introduzido no seu sapato há horas atrás e que pouco a pouco lhe fizera crescer uma bolha que alastrava lentamente mortificando a pele e a carne a cada passo.
Todo o corpo lhe doía, mas eram as dores da alma que o consumiam, por isso não podia sentir as do corpo, ou sentindo-as não as conseguia distinguir das que lhe ardiam por dentro dos músculos e tendões e orgãos da sua alma dilacerada.
Finalmente viu uma árvore no meio do pinhal afastada do caminho que lhe pareceu adequada ao fim que buscava.
Parou e sentou-se no chão poeirento, mas de um impulso levantou-se e antes que lhe faltasse a coragem abriu a mochila donde tirou a corda. O nó já o trazia pronto de casa.
Subiu a um ramo, prendeu a corda, fê-la passar pelo pescoço, afastando o fantasma de todos os pensamentos e dúvidas que lhe pudessem assaltar a consciência se lhes desse meia oportunidade e engolindo em seco saltou para o abismo. Para o fim que buscava.
Ouviu-se um baque quando a corda se tencionou e um urro de dor ou pavor que ele não conseguiu evitar.
Joana vinha de sua casa e acabava de entrar na mata. Ninguém passava por ali aquela hora do dia e muito menos debaixo do calor tórrido que se fazia sentir naquela tarde de Agosto.
Agora era só fazer o caminho que atravessava o pinhal até à velha casa em ruínas na qual costumava esconder os items de valor que ocasionalmente furtava. Aquele esconderijo era-lhe conveniente e tinha mesmo que deixar ali os frutos das suas actividades ilícitas. Em casa não podia guardá-las, já tinha tido demasiadas complicações anteriormente por isso.
Seguia o caminho em silêncio quando escutou o ruído de um ramo a quebrar-se e olhou na direção donde vinha o som.
Longe na floresta via-se a silhueta de um corpo que suspenso pelo pescoço e tocando no chão apenas com a ponta dos pés se agitava esbracejando, tentando em vão agarrar-se ao tronco da árvore.
Surpreendida e chocada Joana correu na direção do corpo o mais rapidamente que pode.
Á medida que se aproximava a cena com que se deparava ganhava outros contornos. As unhas do homem estavam quebradas, partidas, cheias de sangue, resina e casca de pinheiro.
Agarrou-o por trás evitando os braços cegos que tentavam naquele momento ser tenazes e cravar-se fundo em qualquer sólido que conseguissem tocar.
Notando que assim só poderia proporcionar ao homem algum alívio momentâneo largou-o de novo e saltando agarrou a corda suspendendo-se nela. O ramo que já tinha quebrado parcialmente finalmente cedeu e ambos caíram ao chão.
Joana levantou-se, sacudiu a poeira dos joelhos que esfolara com a queda e olhou o homem à sua frente.
Ele não reagiu, não mexeu um músculo. Deitado de costas no chão olhava o vazio.
  • Porque fizeste isto? – gritou com raiva Joana.
  • Porque te queres matar? - perguntou mais calmamente.
Não houve resposta. Manuel continuava de olhar perdido no abismo celeste, mas as lágrimas começaram a jorrar.
Ela apiedou-se dele, algo na tristeza dele era sincero e nobre.
Algo nos olhos vazios dele lhe recordava uma criança embora ele fosse mais velho que ela.
Notando que as palavras não o podiam tocar, que ele estava naquele momento além de quaisquer palavras que ela ou outra pessoa poderiam dizer, envolveu-o nos seus braços e cantou baixinho para ele uma canção de embalar da sua infância que há muito tinha esquecido.




Conto 3

 Habitas-me

No cinema os funerais ocorrem sempre debaixo de chuva. O céu chora a perda do ente querido em pesadas e abundantes gotas de água.
As pessoas trajam de negro e o céu de cinzento, a raiva e frustração calada de quem fica, pela ausência de quem parte é comunicada pelos uivos do vento e pelo ribombar dos trovões. Homem e natureza em sintonia, complementando a alma de um no cenário do outro.
Talvez por isso me parecesse errada e incompleta a forma como me despedi de ti sob um sol ameno, respirando a brisa perfumada de Maio, numa atmosfera carregada do chilrear dos pássaros e do longínquo riso de crianças a brincar.
As pessoas chegaram, apresentaram as suas condolências e partiram de novo. Deixaram creio eu palavras sinceras e sentidas que eu não consegui ouvir. Não me recordo de nenhuma pois o meu diálogo interior era contigo e comigo mesmo.

Tudo poderia ter sido melhor, oportunidades não faltaram. Devia ter-te ouvido mais, ter-te dado a hipótese de teres sabido mais da minha vida, partilhado mais sentimentos, confiado mais.
Sei pelo menos que estive presente quando foi mais necessário...
E agora? A mulher admiravél que foste, todos os sonhos e esperanças que trazias em ti, todas as tuas qualidades, os teus defeitos, os teus tiques pessoais, tudo o que te fazia diferente e insubstituível, estará condenado a desaparecer lentamente, desvanecendo-se aos poucos como o fumo que se afasta de uma chaminé?
Recordo-me da forma como estavas sempre a mexer no cabelo com a ponta dos dedos, ou como permanecias imóvel durante minutos inteiros com os teus olhos parados nos meus.
Na noite procuro com os dedos o teu corpo que já não está ao meu lado, ansiando pela curva do teu pescoço, a pele macia das tuas costas, pelo volume firme dos teus seios, pelo calor húmido das tuas coxas.
Tu eras tu, tão própria, tão simplesmente tu que dói e sinto até falta, sinto ainda mais falta, daquelas pequeninas imperfeições que ás vezes me irritavam; a forma como evitavas abordar alguns assuntos que te apoquentavam e andavas ás voltas com artifícios melindrosos dando pistas que eu não entendia até que fosse eu a abordar o tema; o teu jeito de ser sincera, abrindo a boca para dizer a verdade naqueles momentos em que qualquer outra pessoa teria de forma inteligente evitado a questão ou respondido com uma mentira piedosa, e a forma teimosa como tinhas sempre de ter a ultima palavra nas discussões.
O todo é mais que a soma das partes e NÓS fomos muito mais que tu e eu.
Ter vivido contigo enriqueceu-me, fez-me crescer e a ti também.
Enquanto cá estiveste preencheste as minhas lacunas, calaste os meus medos, anulaste as deficiências do meu coração e do meu temperamento.
Habitaste-me e hoje que partiste vais continuar a habitar.
Enquanto eu existir uma parte de ti estará comigo sempre.
Habitas-me!

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